Entrevista com Delfim Netto sobre a crise norte-americana e a posição brasileira

O problema de liquidez no mercado interno, que forçou o Banco Central (BC) a mudar o depósito compulsório na semana passada, resulta da decisão dos grandes bancos brasileiros de colocar as suas reservas financeiras em títulos públicos, segundo avaliação do ex-ministro da Fazenda Delfim Netto. Ele propõe que o BC e o Ministério da Fazenda sentem à mesa com os principais banqueiros e cheguem a um acordo de como enfrentar a crise. “Agora eles terão de cooptar os banqueiros, mesmo”, afirmou Delfim. “É dizer: Olhem aqui, vocês podem até empoçar o dinheiro que vocês têm aí, mas só que vocês vão pagar um preço caro”.

Em entrevista ao Estado, Delfim fala das razões que levaram à crise financeira, analisa o pacote do presidente George W. Bush e conclui que em menos de um ano e meio a confiança que existia nos mercados não será restabelecida. Para Delfim, um dos resultados da crise será a maior regulação da economia, com o Estado definindo a “moralidade” do mercado. Mas o ex-ministro acha que o pacote não evitará a recessão nos Estados Unidos. A economia brasileira poderá ser uma das menos afetadas e crescer 4% a 4,2% em 2009, estima Delfim.

Como o mundo chegou a este ponto?

O sistema de mercado, que também chamam de capitalismo, flutua mesmo. Desde a sua origem, ele tem flutuações com períodos e amplitudes diferentes. Esta não é a primeira e nem será a última vez. A cada flutuação, o sistema se corrige. De repente, acontece um ciclo que não era explicado pela teoria anterior. A teoria se modifica e criam-se instituições que impedem que causas que produziram aquele ciclo se repitam. A rigor, essa flutuação acompanha mais ou menos um ciclo psicológico de entusiasmo e depois de pessimismo. Essa crise que estamos vivendo é simplesmente o fim de um desses momentos.

Há muito tempo não se tinha uma crise tão séria.

Em 1979, quando o mundo viveu a segunda crise do petróleo e a enorme inflação americana, o sistema também explodiu. Para resolvê-la, o Paul Vocker (ex-presidente do Fed, o Banco Central dos EUA) fez aquele estrago (elevou a taxa de juro americana a quase 20% ao ano). Atribuiu-se aquela crise a um excesso de regulação. A partir dos anos 80, veio a nova moda. O diagnóstico foi que, se essa regulação que existia fosse sendo dissolvida, provavelmente o mundo iria continuar perfeito e não teríamos mais ciclos. Isso foi sendo levado longe demais e com uma hipótese que, em minha opinião, é falsa.

Qual hipótese é falsa?

A idéia de que a auto-regulação é eficaz, de que os agentes se auto-regulariam. Para funcionar, o mercado precisa realmente de um agente catalizador, que é invisível, que é a confiança. Sem esse agente, o mercado não funciona. Durante esses anos todos, os governos foram permitindo que a imaginação ampliasse os negócios, que se criassem derivativos, se criassem novas instituições. Em algum momento, ocorreu um problema, que foi a crise do subprime. Na verdade, essa crise era uma coisa restrita, inicialmente.

Como assim, restrita?

Na verdade, no início, o problema se restringia àquelas hipotecas que previam correção por taxa de juro flutuante. Aquilo não era um problema que pudesse causar um abalo. Mas, quando se foi verificar, ela era apenas a ponta de um iceberg. O sistema financeiro, usando a desregulamentação, tinha produzido duas coisas. A primeira foi um financiamento imenso, que acelerou o crescimento do mundo inteiro. Na verdade, colocou o mundo para andar. Em segundo lugar, o sistema tinha inventado operações altamente arriscadas, com alavancagem gigantesca. Isso tudo, em minha opinião, está ligado também a uma desconfiança que nos últimos anos vem se estabelecendo entre o Fed, o Tesouro e o Congresso americano. Faz muito tempo que o Congresso está desconfiando de que o Tesouro e o Fed não sabiam nada do que estava acontecendo ou estavam escondendo os fatos.

O Fed também errou, pois manteve durante muito tempo uma taxa de juro muito baixa.

Sobre isso não há dúvida. O mais grave, no entanto, é que ele (o Fed) continuou com a idéia de que não precisava regular, de que os agentes do mercado teriam aquilo que o Adam Smith (economista inglês do século 18) chamou de o observador imparcial. Ou seja, acreditaram na hipótese de que os agentes não fariam sacanagem nenhuma. Mas ficou visível que esse mercado, com essa imaginação e com os incentivos perversos que ele estabeleceu, como aquele sistema de bônus absurdo, construiu isso que está aí. Em minha opinião, o Fed errou duas vezes. Errou porque manteve a taxa de juros muito baixa durante muito tempo. Ela foi permissiva, foi laxista e permitiu que tudo isso acontecesse. O mais grave, no entanto, é que não houve o menor controle da qualidade das operações.

Os EUA agora querem regular o mercado.

O pêndulo vai para o outro lado, agora. Eles estão propondo restabelecer a regulação. O drama é o seguinte: aquela desregulamentação produziu resultados extremamente positivos e terminou numa desgraça. Não se pode jogar fora a criança junto com a água do banho. É claro que é preciso regular, mas é preciso manter a iniciativa, a capacidade que o sistema tem de inventar coisas novas e, ao mesmo tempo, impedir que ele repita os erros. Vamos entrar num período que levará uns dois ou três anos de correção dos erros. Vamos moer tudo isso.

Estamos vivendo o fim do neoliberalismo?

Em primeiro lugar, eu não sei o que é neoliberalismo. Portanto, não posso saber se estamos vivendo o seu fim. Agora, certamente, não estamos vivendo o fim do capitalismo. E muito menos o fim da economia de mercado. Não há nenhuma alternativa que tenha a eficiência alocativa da economia de mercado. Também não há nenhuma alternativa que seja compatível com a liberdade individual como a economia de mercado.

O modelo que surgirá da crise prevê uma maior intervenção do Estado na economia?

Sem dúvida nenhuma, o Estado vai regular mais. O mercado precisa de uma moralidade. O velho Adam Smith estava certo, a economia é uma ciência moral. A moralidade pode ter duas origens: a auto-moralidade, que é aquela hipótese do Adam Smith do observador imparcial, ou, então, o Estado controla essa moralidade, que é o que vai acontecer agora.

Não foi surpreendente o governo americano ter de estatizar banco, seguradora e outras instituições?

O governo americano não está estatizando porque deseja. Ele está estatizando porque o próprio mercado seria incapaz de continuar funcionando sem isso. Diante de uma crise sistêmica, não adianta querer discutir. Não estamos tratando de questões filosóficas, mas de problemas práticos.

É difícil acreditar que o governo americano não viu o problema antes dele eclodir.

O grosso do negócio ocorreu em 2006, quando se inventou uma operação em que havia a hipoteca com taxa de juro variável. Com essa operação, a inadimplência cresceu dramaticamente. É evidente que o governo americano poderia ter feito uma intervenção antes, mas deixaram a coisa rodar. E, obviamente, a intervenção no Lehman Brothers foi outro erro. Achou-se que não haveria nenhuma dificuldade e decidiu-se fechar o Lehman. Quando fizeram isso, explodiu o resto. Eu acho que o Fed cometeu erros sistemáticos e continuados.

Há um ano, o Alan Greenspan era um gênio. Hoje é um dos culpados.

Era o maestro. Mas vários economistas chamaram a atenção para os problemas. O Paul Krugman é um deles. O Keneth Rogoff e uma porção de gente diziam a mesma coisa.

O pacote do presidente Bush resolve o problema?

Ele é o começo de uma solução. O pacote vai dar uma acalmada nos mercados. Uma das coisas mais importantes do pacote é estender a garantia dos depósitos de US$ 100 mil para US$ 250 mil. Isso vai tranqüilizar o interior dos Estados Unidos. Os pequenos bancos é que estavam sofrendo.

O governo americano vai agora tirar os títulos podres dos bancos.

É. E montar um mecanismo para precificar isso.

Mas quanto custam esses títulos podres?

Ninguém sabe. O custo será aquilo que o Tesouro americano gastar menos o que for recuperado. O custo, portanto, vai depender muito da competência de quem vai recuperar os créditos. Na medida em que a coisa for sendo feita de maneira mais organizada, vai-se produzindo menos prejuízo e mais rapidez na recuperação da confiança. Mas em menos de 18 meses não se volta para aquela confiança plena. Agora a Europa se reúne e vai colocar dinheiro de uma forma mais organizada.

O pacote evitará o desastre. Mas o crescimento econômico mundial será afetado?

O pacote não evitará a recessão nos Estados Unidos. Isso porque os fluxos de financiamentos não serão restabelecidos automaticamente. O tamanho da recessão é que não sabemos. Eu espero que a retração do PIB fique em torno de 1% a 1,5%. A Europa está pior do que os Estados Unidos.

A crise começou a afetar o Brasil via crédito.

Mas eu acho que, nesse caso, foi muito mais um efeito psicológico. Qual é a razão do Itaú ou do Bradesco restringir o crédito, a não ser a possibilidade de uma crise? O Banco Central e o Ministério da Fazenda terão que agir com muita eficiência. Agora eles terão de cooptar os banqueiros, mesmo. É preciso sentar-se à mesa com eles e enfrentar essa situação. O BC está liberando o compulsório, o que é o primeiro ato muito lógico. O segundo é o problema dos ACCs (adiantamentos de contratos de câmbio). O ACC hoje é capital de giro, que ajudava a melhorar a taxa de câmbio. Se não tiver crédito para os ACCs, o que vai acontecer é que eles não vão ser pagos, porque muitos deles são jogados para frente. Há outro setor que precisa de atenção especial do governo, que é o setor imobiliário, onde eu acho que o governo terá que usar a Caixa Econômica Federal. Vai ocorrer uma reorganização nesse setor e é melhor que o governo tome conhecimento disso, pois o setor imobiliário é decisivo para o crescimento. O governo dispõe de alguns instrumentos, como o BNDES, o Banco do Brasil, os bancos regionais e, com eles, pode cooptar os bancos.

Porque está havendo essa escassez de crédito?

Onde está empoçado o dinheiro? Nos grandes bancos. Porque eles podem ficar com esse dinheiro? Porque o governo fornece para eles os títulos com os quais eles têm lucro e não tem risco. Então, o governo não pode mais fornecer esses papéis. Eles (os bancos) precisam voltar a emprestar e correr algum risco.

O Brasil passa por essa crise sem grande contração de sua economia?

O Brasil sofrerá menos que a maioria dos países emergentes. Outro dia ouvi um economista dizer que o Brasil vai crescer 1,5% no próximo ano. Isso é uma bobagem, pois só o carry over (carregamento) do crescimento de 2008 para o próximo ano é de 2,8%. Seria necessário dar uma queda do PIB de 3% durante 2009 para dar 1,5%. Acho que tem toda a chance de crescer em torno de 4% ou 4,2%.

Alguns economistas estão dizendo que a redução do crédito dará um tranco na economia, o que permitirá que o Banco Central não eleve novamente a taxa de juro.

Não tenho dúvida disso. É mais do que suficiente. Se o BC fizer a política correta com os bancos, eu acho que o efeito da crise sobre o Brasil vai ser muito pequeno.

Qual é a política correta?

É dizer para eles (banqueiros): olhem aqui, vocês podem até empoçar o dinheiro que vocês têm aí, mas só que vocês vão pagar um preço caro. Eles (do BC) têm competência para isso, só não têm ideologia.

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